domingo, 7 de março de 2010

O Sono de Thiago

Saiu de Volta Redonda jurando nunca mais voltar. Mas voltou. E mais de uma vez, ao menos em pensamentos. Sentia profundas saudades do silêncio das ruas, das mansas noites que cobriam sua cidade, daquilo que trivialmente chamamos paz.

Copacabana sempre foi seu sonho, dividir o apartamento com amigos era só um detalhe, apenas uma situação nova a ser superada com aquele seu habitual jeito boa praça. Estudar História da Arte no Rio de Janeiro era tudo. As roupas espalhadas pela casa, o chão do banheiro eternamente molhado, o papel higiênico que sempre acabava na sua vez eram contratempos aceitáveis. Até a pia da cozinha, com seus pratos sujos equilibrados em torres de dar inveja aos arquitetos de Dubay, era aceitável. O mar fazia tudo valer à pena.

O problema era à noite. Seus amigos não precisavam acordar cedo e suas conversas invadiam a madrugada. Por horas ondas de palavras se chocavam na sua orelha e agudos risos de gaivota penetravam seus tímpanos.

Thiago não conseguia dormir e sua mente se transformava num monstro com vontade própria. A fórmula pensamento² tinha um resultado certo: insônia. Detalhes do dia, idéias grandiosas, imagens do telejornal. Tudo era arremessado na caldeira, tudo servia de combustível para aquela bestial locomotiva cerebral que viajava, viajava, e nunca chegava a lugar nenhum.

Uma vez mais pensou em Volta Redonda. Recordou sua infância: a igreja, a missa, a homilia. Pensava agora de adulto que os créditos do movimento surrealista deveriam ir para João, que escreveu aquele texto muito louco do Apocalipse muito antes de Buñuel e Dalí. Lembrou das festas juninas no pátio e das simpáticas freiras que ajudavam servindo bolo de aipim. Lembrou de uma foto que viu da irmã Dorothy, a freira que ficou conhecida como o “Anjo da Amazônia” por defender a natureza e seus moradores mais pobres e que acabou morta com seis tiros.

Naquela casa reinava a lei da selva, o barulho continuava e seu sono ia se tornando um animal em extinção. Cansado de pedir silêncio, passou a usar tampões de ouvidos. A idéia funcionou, o volume dos sons indesejados diminuiu e pela manhã o despertador era alto o suficiente para acordá-lo.

Porem alguns slides pré R.E.M. ainda sobreviviam ao silêncio e pensou numa gravura de Joana d’arc e que vira a muitos anos num livro antigo, queimando congelada em preto e branco. Pensou também no quadro Crucificação de São Pedro pintado por Caravaggio em 1601, com o santo sendo pregado de cabeça para baixo. E o desfile de imagens soturnas prosseguiu até que adormeceu.

Mas o sono feliz de Thiago teve suas noites contadas quando o hotel que ficava em frente a sua janela inaugurou um novo letreiro luminoso. O neon intermitente era forte o suficiente para transpassar a cortina encardida, e mais uma vez, seu descanso estava em cheque.

Para se proteger do raio laser comprou numa loja de viagens uma máscara para dormir. Era basicamente um pedaço de nylon preto, mas na caixa dizia “Eye Shades” e pagou uma pequena fortuna por ela.

Contudo numa noite o vazio ainda lhe reservou espaço para um pensamento. A lembrança de uma matéria que vira na televisão. A notícia do falecimento da fundadora da Pastoral da Criança no terremoto do Haiti. Uma senhora que tinha dedicado a vida a fazer o bem morrera soterrada pelo teto de uma igreja. Pensou que Deus tinha um jeito peculiar de agradecer seus seguidores mais fiéis.

O fogo se espalhou rapidamente e engoliu em minutos o andar de Thiago. Fiação de prédio antigo nunca é de se fiar. Seus amigos acordaram com os gritos e conseguiram se salvar. O kit Samsonite justificou seu preço e não permitiu que nenhuma interferência do mundo exterior o incomodasse. O tão sonhado descanso chegou para Thiago. Chegou para ficar.

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