segunda-feira, 28 de abril de 2008

Romanos

A dor aguda na palma das mãos, a dor insuportável que subia pelas pernas, o peso do corpo vencendo o próprio corpo; tudo fechava um círculo perfeito de agonia. Homem vitruviano, proporção da dor. O círculo se completava, eclipse da esperança, não há como escapar. Tendões esticados, súplicas lançadas. É mais do que um ser humano pode suportar. Saber que morria crucificado defendendo a Judéia de seus invasores não deveria ser mais reconfortante? Olhou para o céu e notou que o vento empurrara as poucas nuvens da manhã. O dia teria uma linda tarde de céu claro. O azul que breve banharia generoso os vivos, os rios e as colinas, não lhe pertencia mais. Sequer uma breve chuva foi enviada para chorar seu corpo. Rezar para Deus realmente existir era o último que as retorcidas forças do seu corpo conseguiam implorar. Rezar para acordar logo no paraíso. Rezar para que aquele corvo pousado à direita da cruz bicasse seus olhos apenas após a sua morte.

As garras fincaram-se firme sobre seu ombro. Sentiu-as com nitidez. Sentiu-as com a nitidez de quem ainda esta vivo. Pensava em preparar-se mentalmente. A punhalada veio antes. As finas pálpebras fechadas não foram obstáculo. Beliscar um pedaço, levantar a cabeça, sacudir para retirar o excesso e deixar o alimento gelatinoso escorrer pela garganta. O corvo realizou seus serviços de forma metódica e mecânica. Por que desperdiçaria um banquete daqueles?

Com o sangue escorrendo pelas mãos, pelos pés, e agora também pelo rosto, morreu mais um guerrilheiro judeu que ousou enfrentar o império romano. Pregado numa infinita coleção de borboletas, era apenas mais um. O sangue e o suor escorreram pela madeira, o vento se encarregou de lambê-los e secar tudo. Serviço completo. Serviço encerrado.

terça-feira, 22 de abril de 2008

JUÍZO (filme de Maria Augusta Ramos)

É verdade que na categoria “filme-sôco-na-boca-do-estômago” ele não chega ao patamar de Baixio das Bestas (um dos melhores filmes que assisti ultimamente). Mas ele entra definitivamente na categoria “filme que executivos que tomam cappuccino na avenida paulista orgulhando-se do PIB nacional deveriam ser obrigados a assistir” (tipo Laranja Mecânica mesmo). Há quem diga também que ouvir as sentenças diretamente na voz aguda da juíza Luciana Fiala já seja castigo suficiente. Mas o interessante é que mesmo sem mostrar cenas de estupro infanto-juvenil, abdicando de trilhas sonoras emotivas e ignorando uma fotografia que poderia ser tocante o filme cumpre seu objetivo com perfeição. Quem não perceber que 99% dos jovens infratores são exatamente iguais: pretos, pobres e sub-nutridos merece sucumbir no juízo final.

domingo, 13 de abril de 2008

Paris em 10''


A Monalisa é uma Postal,

Jacques David é o cara.

O metro é sujo,

o Siena límpido.

Notre Dame é média,

a Torre Eiffel gigante.

O Egito foi saqueado,

há provas no Arco.

O Louvre é um mundo.

Van Gogh o universo.


quarta-feira, 9 de abril de 2008

Asfalto

O asfalto, de perto, partido.

Poros abertos, amargos, ásperos.

Língua de gato. Negro. Desespero.

Diáspora de mitocôndrias, micróbios.

Insetos famintos, o catarro alimenta.

Generoso, verde, farto.

Molhe os lábios. Engula seco. Laringe arranhada.

Abra os brônquios, feche os olhos. Escute.

Motores giram, gritam, gargantas berram, aceleram!

Todos erram...

Mitocôndrias, micro-ônibus, bactérias, artérias, vielas.

Tudo pro ralo. A chuva chega. Carrega. Lava, leva.

Esmola & Literatura


Mendigo lendo nas calçadas de Paris.

Anjos, Sapos e Gaivotas

Lanças no meu sonho. Sono precário. Crianças espetam um rato morto. Agulhas de tricô na carne branda. Na minha carne, o despertador executa sua função com precisão cirúrgica. Venceu. Estou acordado. Todo o vazio da existência invade meus pulmões. Quero correr, quero voltar para o nada. Nada feito. O oxigênio traz consigo a vida. Vida que não pedi.

No espelho um rosto. No rosto um par de olhos. Nos olhos negros uma passagem. Só de ida para o nada.

Perdi vinte minutos me olhando. Perdi o metrô. Meu dia vai ser diferente? Não, já vejo a luz do próximo. Vidas sem sentido, sentido Zona Norte.

A escada rolante tem dentes. Sua lateral, arranhões. Papel picado sob os pés. Degrau por degrau o destino é inevitável. Um a um são engolidos no final. Eu não. Sou cuspido para fora. Metrô Rio informa: mais uma alma nua foi parida. A luz grita sobre mim. Quero correr, quero voltar. Já é tarde. Nunca subestime o sol do Rio de Janeiro.

Vi homens engravatados carregando uma cruz. Pisquei. Sumiram. Foi apenas impressão. A igreja da Candelária é testemunha ocular. Nunca Deus passou por aqui.

Não importa o sol. O céu é sempre cinza. Navios gigantes cruzam a Avenida Rio Branco. Lentos, ácidos, tristes. O chão se abre, engole tudo. Humanos gritam, todos correm. Dos céus vem o anúncio: Dos seus não vai sobrar nenhum! Sete anjos mergulham como gaivotas. Chuva de canivetes. Pisquei. Sumiram. Foi apenas impressão.

O sinal abriu. É melhor atravessar. Queria escrever algo poético, mas pelo amor de Deus, quanta gente feia.

Posso contar meus passos. Posso contar o que vejo. Posso contar papeis no chão, catarros, sangue humano. Posso contar cabeças que corto, com minha katana. Certeira, linda, prata, imaginária.

Passo impune pela multidão. Ninguém tocou minha pele. Alívio.

A serpente furou meu pescoço. Seus finos dentes grampearam meu cartão de ponto. Ponto para o Rei Sapo. Mais um dia me apresento. Vim pagar tributo. As engrenagens estão secas, sedentas. Suas peças enferrujadas sorriem ao me ver. Mostro meus braços, ofereço minhas artérias. Bebem. Bebam. Podem ter meu corpo, jamais minha alma.

Alma?

No reflexo do monitor um rosto. No rosto um par de olhos. Nos olhos negros uma passagem. Só de ida para o nada.